sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

4.2 - Os antigos moradores

Geraldo Gomes Rangel, conhecido como Geraldo Anjinho, 62 anos, hoje morador do distrito de Goytacazes, em Campos, passou toda sua infância nas terras da fazenda do Colégio. Com a urbanização de outros pontos da cidade e a falta de emprego algumas famílias foram obrigadas a deixar o lugar. Incluindo a família de Geraldo, porque era preciso procurar escolas para as crianças e empregos para os mais velhos. Por isso acabou por optar, como muitos optam, por abandonar as raízes das famílias.
Das histórias dos bons tempos, segundo Geraldo, nada se compara às festas, danças e comidas típicas, que todos faziam na fazenda. Num rasgo de saudade olha um pouco para esta história situada no passado:

“Eu dancei o Jongo, Mana-Chica e outras danças. O tempo foi ingrato e já não me recordo de muitas letras e sinto muitas saudades da reunião com os amigos que já se foram”.

De acordo com outros moradores da Baixada Campista, as festas aconteciam no campo da fazenda e reuniam diversas pessoas junto à roda para o Fado, Mana-Chica, Mazurca, entre outras que a lembrança dos mais antigos já não consegue alcançar. No livro de Lamego (op, cit. p.37) há um relato que lembra bem esses tempos:

“As festas do Colégio seguiam dias a fio. Com os seus banquetes formidandos, com suas danças guerreiras de negros e índias, ante a fachada cingida de luminárias e sob o estrugir das salvas da Mosquetaria da Ordenança
12, pelas noites fantasmagóricas de artifícios, foram as maiores que se viram na capitania”.

O que não falta são perdidas lembranças dos moradores que viveram ouvindo as lendas passadas pelos mais antigos. José da Penha Trindade, 69 anos, viveu 40 deles servindo à família Barroso, cuidando da casa grande e plantações, diz que gostava mais era de realizar serviços na Capela de Santo Inácio
13, “sempre silenciosa na ausência das celebrações litúrgicas”.

“Santo Inácio nasceu no ano de 1491 em Azpeitia, província de Guipúzcoa, região dos bascos conhecida como "Vascongadas". Caçula de 11 irmãos, ficou órfão de mãe aos 8 anos de idade e de pai aos 14 anos. Aos 23 anos foi para Salamanca, para estudar na famosa universidade do mesmo nome e, mais tarde, completa seus estudos de filosofia e teologia na universidade Sorbonne, de Paris. Inácio sempre mostrou-se contrário a estas correntes e, fiel à igreja de Roma, passou a trabalhar decididamente mais pela "Renovação" do que pela "Reforma" da Igreja. Durante este período na capital francesa, conseguiu conquistar para a causa da fé mais seis companheiros da universidade, entre os quais Francisco Xavier, futuramente o apostolo da Índia e do Japão, declarado padroeiro das missões. Com estes companheiros, faz os votos em Monmartre, deixando claro que o ideal de seguir a Jesus se identificava com o serviço à Igreja e ao Romano Pontífice e funda a Companhia de Jesus”.

A convite da equipe de pesquisadores desta monografia, o conhecido “Zé Trindade”, volta às dependências do Solar e ficou difícil para ele conter as lágrimas. Andando pelos longos corredores e dezoito cômodos, a casa divide-se em pavimento térreo, andar superior e fundos, mas não há mais senzalas e pelourinho. Tudo com marcas de muita história.

“A capela não tem mais nada como antes. Cada pedaço deste lugar vem algumas lembranças, nomes dos patrões e de alguns funcionários da fazenda. Desde quando tive que ir embora e o prédio foi entregue para o governo do Estado, há vinte anos, não tive a oportunidade de entrar. Hoje, olho com saudade dos velhos tempos”.
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Os nomes dos antigos companheiros foram aparecendo na medida em que o vento nordeste, sempre pródigo na região, refrescava sua mente:

“Lembro-me de Manoel Gomes, faleceu com 70 anos e já se passaram 40 anos desde a sua morte. “Biru”, assim era chamado por todo mundo das redondezas, trabalhador antigo da fazenda, era responsável por tocar e fazer trovas para as festas nas noites de luar. Animado, não deixava ninguém ficar parado e a cachaça mais ardente nunca faltava nas rodas para molhar as palavras nas festas cheias de encantamento. Os homens batiam palmas e as mulheres rodopiavam balançando os vestidos de chita, algodãozinho ou tafetás. O cântico forte dos velhos negros falecidos parecia ecoar pela noite a dentro”.

Nos meses de maio, exatamente nos dias 13, os tambores esquentavam as noites frias do Colégio. Era para relembrar os tempos quase esquecidos da escravidão. Em cada cômodo que Zé Trindade passava, relembrava uma história, lembrou das mobílias que faziam parte da casa grande e de cada detalhe da rotina do lugar:

“Aqui no segundo andar, parte central da casa grande, era o quarto de Dona Totó, uma prima dos Barrosos, que também morava na casa grande. Conta a história que depois que terminou um namoro ficou muito magoada e resolveu se trancar no quarto até morrer. Não saía para nada, as pessoas viam apenas seu rosto. Lembro que era engraçado o jeito que cuidava da sua higiene pessoal e das necessidades materiais: enrolava as fezes num jornal e jogava pela janela pros criados”.

Quem também relata, com detalhes, um dos pontos mais visitados do casarão – os jardins”, é Tereza Augusta Barroso (March, p.33). A suavidade nos detalhes que ela descreve faz o leitor voltar a décadas passadas.

“Circundava todo muro do jardim um canteiro estreito, com roseiras e diversas outras plantas e flores bonitas. Também este canteiro passava junto as paredes da igreja arredondando suas extremidades e onde eram plantados lírios, lágrimas-de- vênus e tinhorões. Junto ao muro, do lado direito, ficava um grande tanque, quase da mesma altura, com aquela bomba antiga e pesada, exigia que as crianças nele se dependurassem para movimentá-lo. A torneira era enorme com um braço de ferro para abrir”.

Lamego (op. cit. p. 41), acrescenta em seus registros traços que identificam a capela de Santo Inácio antes da reforma:

“O altar de São Miguel surpresa-nos com peculiaríssima originalidade. Entre as pilastras laterais, sinuosamente emoldurantes, entalham-se nas circunvoluções decorativas quatro cabeças angelicais. Os cabelos em gomos ondulados sobem-lhes na frente, e descem pela nuca, encachoeirados, esteriotipando-se no baixo relevo do painel”.

Ataíde da Penha Trindade, 62 anos, o mais novo dos irmãos Trindade, diz que há 35 anos não dança, como na infância, e acrescenta que os antigos não conseguiram passar a cultura para os mais novos por conta das modernices. “A quadrilha perdeu o respeito, o marcador fala bobagens e o cavalheiro, na maioria das vezes, cai no ridículo levantando a dama”, criticou.
Na casa de Carlos Juarez Moço, 72 anos, um dos irmãos do falecido Zé Embate (conhecido como o maior tocador de jongo da Baixada), perguntamos sobre as histórias do Colégio. Com um sorriso nos lábios e um jeito muito tímido, veio logo com este verso fragmentado de um fado antigo, por ele repetido muitas vezes, revelando ter se esquecido do restante da modinha.:

“No domingo
faz quinze dias
que a ponte
caiu, caiu, caiu ...”

Com marcas de cansaço no rosto por causa dos longos anos na enxada e do labutar diário nos aceiros, Moço, lembrando com saudade do irmão, não deixa de mostrar a satisfação quando se fala das festas do Fado, Mazurca, Folias de Reis e dos Bois Pintadinhos.

“Da vida que levava lá o que mais me recordo são os bailes. Quando dançávamos Fado nunca acontecia confusão, já quando o baile era de Mazurca o diabo ficava solto no salão. Continuamos dançando aqui, em Goytacazes, mas foi só até José Embate morrer
14, depois tudo acabou”.

As décadas passaram e a tradição não foi preservada pela filha e pela neta. Moço relembra as danças e sente saudades. Ainda tenta buscar na memória uma daquelas famosas cantigas que eram cantaroladas nas lavouras na hora do trabalho e, enfim, cantadas em alto e bom tom nas festas faceiras das noites dedicadas aos santos padroeiros. Por fim só alguns trechos do Esquinado, uma espécie de Fado, são lembrados:

“Esquinado tirava a dança
e ficava esquinado,
esquinado dança balanceado...”

A dança Esquinado, relatada por Moço é, portanto, uma derivação do Fado, como o é a Mana-Chica do Caboio. Alguns registros da origem do Esquinado foram encontrados no livro “Dicionário de Folclore Capixaba”, de Luiz Santos Neves.

“(...) A dança do Esquinado foi popular no norte do Brasil tendo chegado também ao Espírito Santo. Villa-Lobos aproveitou o tema do Esquinado no seu Choro nº 12, colhido através de informante do Espírito Santo (sic). Como dança, o Esquinado perdeu-se primeiro do que a memória dos seus versos. Estes ainda sobreviveram na lembrança de pessoas antigas (...)”.

E assim surgem cada vez mais estórias do poderoso, e agora adormecido império, entregues apenas à curiosidade dos historiadores. Nas casas da Baixada Campista não há sequer um cidadão que morou ou, de certa forma, desfrutou da fazenda, que não conte algum “causo” ou sinta de alguma forma saudade das festas e da vida simples que lá se levava. Na epígrafe do livro de March, p. 33, o texto de Aloísio Magalhães, sintetiza este tipo de recordação, como se segue: “O tempo cultural não é cronológico. Coisas do passado podem, de repente, tornar-se altamente significativas para o presente e estimulantes do futuro”.
12 O costume de mosquetaria ainda permanece no sertão nordestino. Mas, na baixada, Lamego faz a única alusão a este costume. Talvez um dos primeiros a serem esmaecidos pelo tempo.
13 www.puc-rio.br/info/loyola/bioinac.htm, tem uma ligeira biografia desse também importante padroeiro da Baixada:

14 Dois meses antes de falecer, José Embate, por proposta de Geraldo Anjinho, foi homenageado por uma apresentação do jongo do Núcleo de Arte e Cultura de Campos, com um espetáculo no quintal de sua casa, em Goytacazes. Ele foi fotografado pela reportagem do Jornal Folha da Manhã, tocando sua tambor “Corre Mundo”, defronte ao Solar do Colégio.

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