A força das rezadeiras ainda tem forte presença no interior e muitas ainda conseguem sobreviver perdidas na periferia da cidade. O poder de invocar Deus pedindo forças ecoa por todo ambiente, refletindo na pessoa que carece da prece e das graças. São rezas simples, no fundo do quintal, mas que, para muitos, são os caminhos da cura.
A publicação do “Abecedário da Religiosidade Popular”, de Frei Chico e Lélia Coelho Frota, relaciona com clareza a religião dentro das camadas mais humildes e mostra a fragilidade da vida material da maior parte da população.
“A globalização parece ameaçar a identidade cultural dos povos. No Brasil de hoje, 70% da população vive (sic) nas cidades. Ao contrário dos últimos 25 anos, quando estes menos de 70% estavam no campo. Esta imensa urbanização exige de nós um maior registro da religiosidade popular nas cidades. O cotidiano da cidade moderna e a vida do interior experimentam um forte esbarro. Os migrantes e os habitantes do campo são o lado mais frágil diante da violenta pressão das mídias e do individualismo praticado na metrópole”.
Nos relatos das rezadeiras que, ainda, se perpetuam no tempo, apesar dos avanços nas novas tecnologias, a fé na religião engloba pessoas de todas as classes sociais: “Vem gente de tudo quanto é lugar e, algumas vezes, vem tanta gente que nem tem lugar para todo mundo. Eu rezo quebranto, membros torcidos, espinhela caída e tudo quanto é enfermidade”, afirma a conhecidíssima dona Maria Preta, famosa na localidade de Mineiros. Sem medir esforços trata todos com a mesma atenção e tenta transmitir a mesma força no sentido de curar todas as doenças. É dela o seguinte fragmento:
“Lacraia não come,
lacraia não bebe
corta o rabo,
corta a cabeça,
nas três pessoas da
Santíssima Trindade.”
Na localidade de Saturnino Braga foi encontrada outra rezadeira: Dona Irene Gama, 71 anos, mas os anos não escondem a disposição de dar inveja a muito jovem. Na casa simples, sinais de quem vive na/pela religiosidade. Na sala apertada, três quadros dividem a pequena parede: Santa Ceia, Nossa Senhora Aparecida e outro com a imagem do Sagrado Coração de Jesus e de Maria.
A reza aprendeu com seu avô, Antônio Simão, famoso rezador daquelas paragens até o final do século passado. Diariamente, dezenas de pessoas freqüentam sua casa à procura de alivio para as doenças do corpo e da alma. A maneira de rezar de dona Irene é através de uma tesoura. “O aço da tesoura faz com que o mau/mal olhado não volte para mim. Eu curo qualquer doença, mau/mal olhado, alergia e tudo que faz mal para o coração”.
Na hora da reza apenas algumas palavras são nítidas. Na maioria das vezes é um confuso balbucio. Segue uma oração a Santa Bárbara:
“Santa Bárbara se vestiu, Santa Bárbara descansou. Nosso senhor perguntou: onde vai Bárbara? Vou para o monte, Senhor. Levaste a maldade, o mal de inveja, mal de feitiçaria para os montes sagrados. Para ver o galo cantar. Salve Rainha cravo divino, rosa de amor Nosso Senhor. Se tiver dormindo acordai, acordada ela está vendo esta cruz. Eu rezo essa oração para que no final aprende quem souber, não ensinai. No dia do juízo um grande castigo terá. Obrigado meu pai por mais um dia”.
Enquanto ela rezava mais uma pessoa com “mau/mal olhado”, com muita fé e devoção, foi possível anotar mais uma oração:
“Filho, sua cama tem quatro cantos, cada canto um santo, cada canto da sua cama tem o Espírito Santo. Sua cama tem quatro cantos, cada canto tem um santo, no meio da cama tem um letreiro com Divino Espírito Santo. Sua cama tem quatro cantos, quatro anjos te acompanham: meu São Roque, São Matheus, Virgem Maria e meu Senhor Jesus”.
Impossível não se encantar com a situação. Numa casa simples uma senhora de 71 anos dedica seus dias para ajudar os mais necessitados através de suas orações. Tida para todos como uma líder da comunidade, dá conselhos para qualquer tipo de problema. Até hoje sempre que acontece alguma coisa no lugarejo, as pessoas tratam logo de comunicar à dona Irene, para saber dela o que fazer. Há décadas quando os trabalhadores da antiga usina de Baixa Grande ficaram sem receber, ela fez um repente para cantar para os donos. A letra diz assim:
“A usina de Baixa Grande só tem tamanho e beleza faz pagamento aos rico e sacrifica a pobreza. Doutorzinho não demora vai mudar para o céu. Doutorzinho vai fazer companhia a Noel. Doutorzinho este ano fez um papel engraçado, guardou o dinheiro que tinha para não pagar os empregados.
Como o salário aumentou ele se arrependeu adizou (sic)21 o empregado e o dinheiro apareceu. Doutorzinho que quero ver a coisa como é que, quanta infelicidade essa fábrica de papel. Doutorzinho escute bem vê a coisa como é que os pobres passam com café (sic)”.
Os versos feitos por dona Irene falam de política e tentam orientar os moradores da localidade para a realidade social e é dessa forma que os líderes espirituais acabam se tornando também lideranças políticas22. Nos versos abaixo descreve a política nacional, da região, homicídios e casos de acidentes na estrada próxima a Saturnino Braga. Uma espécie de reportagem sobre os acontecimentos de seu tempo
“Na estrada do Axéu se deu um causo maneiro. Um caminhão de Coca-Cola em uma Rural bateu. Eu vou falar com Zé Barbosa para ele ter compaixão para fazer uma estrada reta de Donana a Santo Antônio”.
“No dia três de outubro teve uma revolução mataram o chefe político por causa da eleição. Chora toda família, não há dinheiro que pague. Leôncio perdeu a vida por causa de Getúlio Vargas”.
“Na estrada do Espinho se deu um causo maneiro. Na rompida do caminho apertaram Batista no dedo. Ai meu Deus que coisa triste, meu Deus que coisa feia. Até hoje não descobriu a máscara vermelha”.
“Getúlio Dornelles Vargas foi grande herói varonil, para pobreza foi pai, enfrentou guerra a fuzil, morreu e deixou seu nome no coração do Brasil. A classe proletária deu apoio e proteção, libertou o empregado da cadeia e do patrão. Por isso todos operários traz (sic) ele em seu coração”.
O país inteiro sentiu se cala e não diz, mas no coração dos pobres seu nome deixou raiz. Pelas faltas que Getúlio tem feito em nosso país. Para o burguês foi amigo e a pobreza foi pai. O país inteiro sente desta lembrança não saí. Enquanto existir Brasil o nome dele não caí”.
A casa, apenas com três cômodos, mostra sinais de pobreza por todos os lados. Na hora do almoço a única coisa que Irene comeu foi um mingau, que não deixou de oferecer como refeição. Quando chegou a hora da despedida, um adeus que valeu pela viagem inteira: “Vai com Deus meus filhos...”
As rezadeiras continuam trabalhando por todos os lados, nos bairros mais escondidos e pelas ruas mais remotas. Quem pensa que essa tradição se foi com o tempo engana-se, porque vai durar, ainda, durante muitos anos. Na localidade de Xexé, pertencente ao distrito de Farol, Tereza Silva Santos, de 67 anos, atende todos os dias mais de 20 pessoas nos fundos de sua casa, onde construiu um pequeno centro espírita de umbanda para abrigar seus inúmeros santos e atender aqueles que procuram pela paz espiritual.
No altar uma mistura de devoção ao catolicismo e a prática da umbanda2323. A continuidade do sincretismo religioso dos tempos da escravidão. As imagens de São Jerônimo, Santa Bárbara, São Pedro, São Cosme e Damião, São João Batista, Santo Antônio, São Sebastião, São Lázaro e São Jorge, ficam juntos aos caboclos e a adorada Iemanjá. Todos dividem um pequeno altar e recebem adorações em suas datas especiais.
Junto com sua irmã, Olga Benedita Silva, 66 anos, Terezinha, como gosta de ser chamada, atende aos enfermos sem ter dia e nem horário marcado.
“Fazem fila aqui em casa para conversar comigo. Se Deus me deu de graça tenho que ajudar aqueles que precisam. Comecei a me dedicar a isso quando minha filha tinha seis anos, ela sumia de dentro de casa, ficava perturbada. Levei em tudo quanto foi médico e nada deu jeito, até que uma entidade conversou comigo e me pediu ajuda, em troca curou minha filha. Hoje, ela é feliz e tem uma vida normal como todo mundo”.
Contabilizar todos os casos que Terezinha resolveu fica difícil, entre eles, ela lembra do caso de um menino, de seis anos, que estava com anemia profunda e, totalmente desenganado pelos médicos, quando procurou a rezadeira. Depois de muita oração e de beber algumas ervas o menino ficou bom, precisando apenas de uma transfusão de sangue para melhorar por completo.
De acordo com Terezinha, a correria do dia-a-dia é gratificante quando consegue resolver o problema das pessoas que chegam até sua casa. “Faço tudo em nome da caridade, se eu puder ajudar é só vir até minha casa simples que será com muita satisfação que atenderei”, finaliza a rezadeira com um “fiquem com Deus”.
A publicação do “Abecedário da Religiosidade Popular”, de Frei Chico e Lélia Coelho Frota, relaciona com clareza a religião dentro das camadas mais humildes e mostra a fragilidade da vida material da maior parte da população.
“A globalização parece ameaçar a identidade cultural dos povos. No Brasil de hoje, 70% da população vive (sic) nas cidades. Ao contrário dos últimos 25 anos, quando estes menos de 70% estavam no campo. Esta imensa urbanização exige de nós um maior registro da religiosidade popular nas cidades. O cotidiano da cidade moderna e a vida do interior experimentam um forte esbarro. Os migrantes e os habitantes do campo são o lado mais frágil diante da violenta pressão das mídias e do individualismo praticado na metrópole”.
Nos relatos das rezadeiras que, ainda, se perpetuam no tempo, apesar dos avanços nas novas tecnologias, a fé na religião engloba pessoas de todas as classes sociais: “Vem gente de tudo quanto é lugar e, algumas vezes, vem tanta gente que nem tem lugar para todo mundo. Eu rezo quebranto, membros torcidos, espinhela caída e tudo quanto é enfermidade”, afirma a conhecidíssima dona Maria Preta, famosa na localidade de Mineiros. Sem medir esforços trata todos com a mesma atenção e tenta transmitir a mesma força no sentido de curar todas as doenças. É dela o seguinte fragmento:
“Lacraia não come,
lacraia não bebe
corta o rabo,
corta a cabeça,
nas três pessoas da
Santíssima Trindade.”
Na localidade de Saturnino Braga foi encontrada outra rezadeira: Dona Irene Gama, 71 anos, mas os anos não escondem a disposição de dar inveja a muito jovem. Na casa simples, sinais de quem vive na/pela religiosidade. Na sala apertada, três quadros dividem a pequena parede: Santa Ceia, Nossa Senhora Aparecida e outro com a imagem do Sagrado Coração de Jesus e de Maria.
A reza aprendeu com seu avô, Antônio Simão, famoso rezador daquelas paragens até o final do século passado. Diariamente, dezenas de pessoas freqüentam sua casa à procura de alivio para as doenças do corpo e da alma. A maneira de rezar de dona Irene é através de uma tesoura. “O aço da tesoura faz com que o mau/mal olhado não volte para mim. Eu curo qualquer doença, mau/mal olhado, alergia e tudo que faz mal para o coração”.
Na hora da reza apenas algumas palavras são nítidas. Na maioria das vezes é um confuso balbucio. Segue uma oração a Santa Bárbara:
“Santa Bárbara se vestiu, Santa Bárbara descansou. Nosso senhor perguntou: onde vai Bárbara? Vou para o monte, Senhor. Levaste a maldade, o mal de inveja, mal de feitiçaria para os montes sagrados. Para ver o galo cantar. Salve Rainha cravo divino, rosa de amor Nosso Senhor. Se tiver dormindo acordai, acordada ela está vendo esta cruz. Eu rezo essa oração para que no final aprende quem souber, não ensinai. No dia do juízo um grande castigo terá. Obrigado meu pai por mais um dia”.
Enquanto ela rezava mais uma pessoa com “mau/mal olhado”, com muita fé e devoção, foi possível anotar mais uma oração:
“Filho, sua cama tem quatro cantos, cada canto um santo, cada canto da sua cama tem o Espírito Santo. Sua cama tem quatro cantos, cada canto tem um santo, no meio da cama tem um letreiro com Divino Espírito Santo. Sua cama tem quatro cantos, quatro anjos te acompanham: meu São Roque, São Matheus, Virgem Maria e meu Senhor Jesus”.
Impossível não se encantar com a situação. Numa casa simples uma senhora de 71 anos dedica seus dias para ajudar os mais necessitados através de suas orações. Tida para todos como uma líder da comunidade, dá conselhos para qualquer tipo de problema. Até hoje sempre que acontece alguma coisa no lugarejo, as pessoas tratam logo de comunicar à dona Irene, para saber dela o que fazer. Há décadas quando os trabalhadores da antiga usina de Baixa Grande ficaram sem receber, ela fez um repente para cantar para os donos. A letra diz assim:
“A usina de Baixa Grande só tem tamanho e beleza faz pagamento aos rico e sacrifica a pobreza. Doutorzinho não demora vai mudar para o céu. Doutorzinho vai fazer companhia a Noel. Doutorzinho este ano fez um papel engraçado, guardou o dinheiro que tinha para não pagar os empregados.
Como o salário aumentou ele se arrependeu adizou (sic)21 o empregado e o dinheiro apareceu. Doutorzinho que quero ver a coisa como é que, quanta infelicidade essa fábrica de papel. Doutorzinho escute bem vê a coisa como é que os pobres passam com café (sic)”.
Os versos feitos por dona Irene falam de política e tentam orientar os moradores da localidade para a realidade social e é dessa forma que os líderes espirituais acabam se tornando também lideranças políticas22. Nos versos abaixo descreve a política nacional, da região, homicídios e casos de acidentes na estrada próxima a Saturnino Braga. Uma espécie de reportagem sobre os acontecimentos de seu tempo
“Na estrada do Axéu se deu um causo maneiro. Um caminhão de Coca-Cola em uma Rural bateu. Eu vou falar com Zé Barbosa para ele ter compaixão para fazer uma estrada reta de Donana a Santo Antônio”.
“No dia três de outubro teve uma revolução mataram o chefe político por causa da eleição. Chora toda família, não há dinheiro que pague. Leôncio perdeu a vida por causa de Getúlio Vargas”.
“Na estrada do Espinho se deu um causo maneiro. Na rompida do caminho apertaram Batista no dedo. Ai meu Deus que coisa triste, meu Deus que coisa feia. Até hoje não descobriu a máscara vermelha”.
“Getúlio Dornelles Vargas foi grande herói varonil, para pobreza foi pai, enfrentou guerra a fuzil, morreu e deixou seu nome no coração do Brasil. A classe proletária deu apoio e proteção, libertou o empregado da cadeia e do patrão. Por isso todos operários traz (sic) ele em seu coração”.
O país inteiro sentiu se cala e não diz, mas no coração dos pobres seu nome deixou raiz. Pelas faltas que Getúlio tem feito em nosso país. Para o burguês foi amigo e a pobreza foi pai. O país inteiro sente desta lembrança não saí. Enquanto existir Brasil o nome dele não caí”.
A casa, apenas com três cômodos, mostra sinais de pobreza por todos os lados. Na hora do almoço a única coisa que Irene comeu foi um mingau, que não deixou de oferecer como refeição. Quando chegou a hora da despedida, um adeus que valeu pela viagem inteira: “Vai com Deus meus filhos...”
As rezadeiras continuam trabalhando por todos os lados, nos bairros mais escondidos e pelas ruas mais remotas. Quem pensa que essa tradição se foi com o tempo engana-se, porque vai durar, ainda, durante muitos anos. Na localidade de Xexé, pertencente ao distrito de Farol, Tereza Silva Santos, de 67 anos, atende todos os dias mais de 20 pessoas nos fundos de sua casa, onde construiu um pequeno centro espírita de umbanda para abrigar seus inúmeros santos e atender aqueles que procuram pela paz espiritual.
No altar uma mistura de devoção ao catolicismo e a prática da umbanda2323. A continuidade do sincretismo religioso dos tempos da escravidão. As imagens de São Jerônimo, Santa Bárbara, São Pedro, São Cosme e Damião, São João Batista, Santo Antônio, São Sebastião, São Lázaro e São Jorge, ficam juntos aos caboclos e a adorada Iemanjá. Todos dividem um pequeno altar e recebem adorações em suas datas especiais.
Junto com sua irmã, Olga Benedita Silva, 66 anos, Terezinha, como gosta de ser chamada, atende aos enfermos sem ter dia e nem horário marcado.
“Fazem fila aqui em casa para conversar comigo. Se Deus me deu de graça tenho que ajudar aqueles que precisam. Comecei a me dedicar a isso quando minha filha tinha seis anos, ela sumia de dentro de casa, ficava perturbada. Levei em tudo quanto foi médico e nada deu jeito, até que uma entidade conversou comigo e me pediu ajuda, em troca curou minha filha. Hoje, ela é feliz e tem uma vida normal como todo mundo”.
Contabilizar todos os casos que Terezinha resolveu fica difícil, entre eles, ela lembra do caso de um menino, de seis anos, que estava com anemia profunda e, totalmente desenganado pelos médicos, quando procurou a rezadeira. Depois de muita oração e de beber algumas ervas o menino ficou bom, precisando apenas de uma transfusão de sangue para melhorar por completo.
De acordo com Terezinha, a correria do dia-a-dia é gratificante quando consegue resolver o problema das pessoas que chegam até sua casa. “Faço tudo em nome da caridade, se eu puder ajudar é só vir até minha casa simples que será com muita satisfação que atenderei”, finaliza a rezadeira com um “fiquem com Deus”.
21 – Ela quer dizer: Indenizou no linguajar simples dos muxuangos da Baixada.
22 – A personagem Beata Maria Santa do Araçá prova esta definição. Ela pode ser lida em Orávio (op. cit., p. 85).
23 As atividades afro-descendentes estão se esmaecendo em virtude do advento das chamadas igrejas eletrônicas. Como não tem espaço na mídia, o umbandismo hoje, segundo o presidente da Federação Espírita de Umbanda de Campos, Geraldo Alves Filho, é representado por cerca de 400 centros e cerca de 4 mil aficionados.
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