quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

14 - Os versos de João Ribeiro

Em meio às pesquisas e as idas e vindas à Baixada Campista, um dos pesquisadores descobriu em um asilo da cidade, João Ribeiro de Almeida, 75 anos, que residia em Água Preta, localidade do município de São João da Barra. Em uma entrevista preliminar ele contou que conhecia muitos versos e passou a declamar para o pesquisador os versos que ele ainda lembrava. No dia 6 de agosto de 2003, o idoso então contou um pouco de sua vida e alguns versos mas que, não possuem nenhuma relação com as danças da Baixada Campista, segundo informações do autor do projeto, as pessoas daquela região tinham realmente o hábito de ficar na praça, ou nos balcões dos bares e mercearias criando e declamando versos de tudo o que acontecia no lugar e naquele derradeiro instante. Esse fato também foi abordado pelo pesquisador José Marques de Melo em seu artigo “As Festas Populares como Processos Comunicacionais: Roteiro para o seu inventário no Brasil, no limiar do século XXI” e publicado no Anuário de Comunicação Regional, Ano 5, nº 5, janeiro-dezembro 2001 – São Bernardo do Campo/SP, UMESP, pg. 113.

“Hoje como ontem e anteontem, o povo se diverte a seu modo, motivando e modificando seus folguedos, mas guardando, invariavelmente, o prestígio da tradição, a evocação dos seus heróis e dos grandes feitos, mesclando as crenças religiosas com o espírito cívico, aglutinando os vários elementos folclóricos com a realidade e produzindo esse quadro imenso, irregular e variado da sua diversão, na qual se mescla a ternura, a hilariedade, a bravura (Almeida, 1973: 212-213).

De acordo com os dados colhidos e pesquisa realizada através do livro “Índice do Folclore Capixaba”, p. 36, de Renato Pacheco e Luis Guilherme Santos Neves, descobrimos que os tais versos nada mais são do que CALANGOS, pois as características são similares. Os versos em questão nada mais são do que DESAFIOS improvisados em linha ou ponto, cujos temas se refletem nos fatos do quotidiano, além de que, os versos normalmente terminam em ÃO, ADO, como vemos neste exemplo:

“Saí um dia chuvoso
para ver um benzinho
viagem muito longa
muito mal o caminho
muito tôco, muita água
buraco que as água faz
quando cheguei no terreiro
meu coração se alembrou
quem veio me receber
foi meu belo e rico amor
convidado para a janta
Para a janta muito obrigado
Eu vendo teu lindo rosto
Tô mais do que jantado”.

Além deste exemplo cujos versos terminam com obrigado e jantado, há também um outro exemplo, cujos versos e rimas terminam com ÃO:

“Se a água fosse tinta
peixe fosse escrivão
teu nome tava escrito
na palma da minha mão”.

“Não precisa água ser tinta
nem peixe ser escrivão
teu nome tá escrito
dentro de meu coração”.

Após a entrevista e a transcrição do seu relato, o pesquisador percebe que o homem traz em sua memória um pouco do que passou e os versos de todos os tipos nada mais são do que um reflexo da sua vida.
Numa mistura tênue João Ribeiro, nos conta versos que analisados meticulosamente nos levam a refletir sobre tudo o que foi pesquisado principalmente quando mostra a sua relação com a natureza, tão característico dos muxuangos, como visto em uma definição acima.

“Subi morro, desci morro
com alpercata na mão
alpercata pegou fogo
desci de pé no chão”.

“Lá no meio daquele mar
veio uma fita voando
minha fita não é nada
meu amor que vem chegando”.

“Aquele coqueiro mais alto
que dá côco pelas pontas
os olhos dessa morena
navega por minha conta”.

“Adeus meu barro vermelho
com a sua barreira branca
passa o tempo que passá
mas não perca a esperança
não perca a esperança
daquilo que vós deseja
se essa água há de cooperar
Pode ser que dá peixe”.

“Se meu tim miudinho
estrepadinho capim
deste céu dessa traga
nunca há de esquecer de mim”.

“Sentadinho no capim
molhadinho de sereno
escrevendo uma cartinha
mandá meu pequeno”.

“Plantei, sameei
areia de beira mar
quando ti batei os olho
não foi mais pra te deixar”.

“De cima desse telhado
escorre água sem chover
faz fumaça sem ter fogo
quem bebe logo se vê”.

“Alecrim na beira d´água
Dá no vento esta bulina
Coração malicioso
No andar me consumindo”.

“Alecrim verde se muda
Só eu nunca me mudei
Ter o sol que tu alembro
Tempo que te amei”.

“Plantei o alecrim
Na hora de Deus, amém
Quando alecrim pegou
Pegou meu amor também”.

Curiosamente, João Ribeiro ao declamar o seu encantamento pelas mulheres, só se refere as morenas, não seria isso um pequeno indício do contato entre muxuangos e mocorongos? Vejam aqui como são esses versos e o seu encanto pelas mulheres.

“Lá detrás daquela serra
passa boi, passa boiada
também passa moreninha
do cabelo encaxeado”.

“Penteai vosso cabelo
balançai, jogai pra trás
faz ventinho no corpo
desengana esse rapaz”.

“Cabelo preto cachudo
raiz de sol quando nasce
corpo bonito bem feito
esse foi que me enganaste”.

“Cabelo preto cachudo
agora que eu reparei
se eu reparasse há mais tempo
não amava a quem amei”.

O amor e a paixão apesar de serem sentimentos tão fortes, faz com que os homens também nutram as suas paixões platônicas pelas mulheres, além do que, quando o casal já possui uma relação, ou um princípio de namoro muitas vezes o fazem escondido, e o mantêem guardado a sete chaves como proferidos nestes versos,

“Primeira vez que eu te vi
Fiquei te querendo bem
caminha boca calado
Sem dizê nada a ninguém”.

“Mandei fazê um relógio
de uma fatia de queijo
pra mim marcar os minutos
das hora que eu não te vejo”.

“Tem razão de dá viçoso
O amor quando mais longe
Mais firme, mais amoroso”.

Mas o homem também passa desenganos e diante dessa situação, João Ribeiro declama:

“O tanto que eu te amava
rompia debaixo de espinho
agora pago pra ver dinheiro
pra não ver o teu focinho”.

“O tempo que eu te amava
rompia debaixo de estrepe
agora pago dinheiro
pra não ver o teu topete”.

“Quem tiver seu amor papudo
que desgosto não terá
vira cara pra parede
deixa o papudo roncar”.

Ainda falando sobre o amor, quando há uma relação muito mais forte, há por parte de ambos uma subserviência, mas também vemos nestes versos um exemplo do sistema patriarcal e da relação existente nesse período como vemos nestes versos:

“Subi o céu por uma linha,
desci pelo retrós,
fui buscar farofa
para mim e para vós”.

Neste verso, declamado por João Ribeiro percebemos uma reminiscência, um fragmento do sistema patriarcal diante da relação de namoro, eis o verso:

“Mandei fazê uma casa
toda ripada de prego
roiaai esse namoro
que aqui não tem ninguém cego”.

Nas relações sociais muitas vezes os homens se chocam e se agridem, e até nisso o homem do campo, rude e bruto mostra de que forma ele resolve as suas pendengas.

“Quando vimo lá de cima
Trouxe faca e facão
Pra cortar esporão de galo
Topete de valentão”.

Finalmente, numa mostra de fidelidade, amor e carinho com o ser amado, João Ribeiro declama este verso que mostra todo o seu “eu” interior. O espírito de um homem apaixonado que distante do seu amor mostra que a distância diminui a sua inspiração, e declama:

“Pediram pra dizer verso,
verso não sei dizer
meu amor num tá qui
eu vou dizê verso pra quê”.

Em meio ao seu depoimento João Ribeiro relatou fatos curiosos do tempo em que vivia em Água Preta, uma delas se refere a maneira que os fazendeiros cuidavam do seu gado.

“Ela tinha um gadinho eu levava dois, três dias no vento, no mato, procurando gado dela lá na praia, pra trazer pra casa inclusive um dia eu tava sem corda sem nada, achei uma vitela em véspera dá cria, tava com um pedacinho de corda de dois metros, três metros mais ou menos, botei o cavalo no rastro da vitela, cansei ela, panhei botei o pedaço de corda ela mansa, tava lá no mato, mas não era muito braba, era domada, ela gingou, eu botei a corda, eu com a mão no chifre, um pedacinho de corda de três metros e truxe entreguei em casa dela. Aí sumiu outra vitela dela e eu rodei um porção de vorta no mato procurando ver se achava e não achei, eu acho que o povo até comeram, porque nessa época era tudo aberto não tinha cerca não, botava os animais pra lá e largavam se parasse ali, bem, se não parasse saía andando, ia embora toda vida, porque não tinha cerca, depois que fizeram cerca, taparam tudo, mas di primeiro era tudo aberto, se você tinha dez vaca, botava lá, se tivesse dois, também botava, outro vinha botava, era igual um cercado, mas não tinha cerca, o animal quisesse aparar ali gostasse, parasse, ficava ali mas quisesse sair andando andava toda vida porque não tinha essa faixa, ia pro mar, pra beirada da praia...(...) Não tinha cerca, era tudo aberto, era um campo igual ao campo da Boa Vista, até inclusive o campo da Boa Vista agora, é tapado, taparam tudo mas, di primeiro diz que era assim, igual a lá onde eu morei”.

Ele conta também como era a vida no campo, nesse trecho:

“Mas eu sei dizer que a vida, primeiro era muito boa, nós tratava só de roça, tinha muito arroz, muito milho, muito feijão, abóbora não botava dentro de casa porque tinha um pé de árvore assim grande, meu irmão tapou por fora, encheu de abóbora, botou mais de um caminhão de abóbora em baixo do pé de árvore”.

A vida no campo era pródiga em detalhes e maneiras bem diferentes de viver. Uma delas diz respeito ao jeito de se fazer o café. No depoimento, João Ribeiro ao ser indagado sobre essa preferência do campista pelo açúcar cristal acaba fazendo uma revelação,

“Não, di primeiro havia açúcar cristal, açúcar mascavo, papai comprava o saco de açúcar mascavo, é aquele açúcar preto, da cor de rapadura, e ele gostava, mandava comprar aquele açúcar pra fazer melado, e fazia melado também de cana, mas ele já tinha o açúcar era só derreter, formava o melado, aí comprava muito açúcar daquele preto, eu mesmo já comi muito daquele açúcar preto, quando tinha, é espremia cana, fazia café de cana, na época tinha muita cana dessas raça de cana boa, cana riscada, cristalina, cana própria para moinho, aí tinha o moinho que fazia, nós fazia café de cana. (...) Era igual ao outro mesmo, mas a gente fazia aquele café forte, doce, bom mesmo, muito bom, mas depois foi acabando tudo, muita farinha, muito biju, muita coisa, tinha uma farturada e triste, tinha de tudo em casa porque papai tinha muita terra...fazia farinha pra dá a porco e tinha aquela farturada de ninguém ligar”.

Ainda sobre as tradições culturais do campista, João Ribeiro relata de que forma o campista da Baixada se alimenta no café matinal, com tapioca, e conta como é feita essa iguaria que até hoje é vendida no Mercado Municipal, nas feirinhas, vendas e é consumida por uma boa parte dos campistas.

“A tapioca é da mesma massa da farinha, a água da mandioca juntalha aquela tapioca ali, côa, deixava secar um cadinho ali, côa, e faz tempera ela de sal, e faz no forno de farinha. (...) Não, faz ela dentro do forno, no forno, como quem está fazendo fritando um ovo, botava aquele bolinho e espalhava ela ali, ela secava, a tapioca, conforme tem aí nas vendas, essa da venda aí, mas ali na feira (feira da roça nas proximidades do Asilo do Carmo e TV Norte Fluminense, essa feira é itinerante e todas as sextas-feiras, os feirantes armam as suas barracas no canto da praça, onde além da quadra de esportes, há a Escola Municipal Maria Lúcia), tem tapioca, eu de vez em quando, eu, o povo não deixa nem aparar quando vem o povo logo compra, porque a tapioca de lá é boa, que eles, tiram a água da tapioca, da mandioca e logo faz a tapioca e esse povo que vem que trata só dessas coisas, de sertão, vem a tapioca e desmancha duas ou três vezes na água, a água, a tapioca fica insossa, fica ruim pra se come, mas daí da feira eles faz lá farinha, tira aquela tapioca enxua ela, côa na peneira, e faz tapioca, vem (vende) tapioca boa mesmo pra aí, doce, boa pra se come, biju, tudo, bão”.

São esses fragmentos perdidos que o pesquisador se vale para compreender a vida do homem da Baixada. Os versos e as poesias mostram também de que forma o morador da Baixada vive, sente e relata o amor as suas tradições e a sua vida cotidiana. E através dos versos de quem viveu o esplendor do Solar do Colégio é que encerramos esse trabalho, que levou meses de peregrinação, entrevistas e pesquisas sobre as Reminiscências Culturais dos Aceiros das Canas da Baixada Campista.

Me pediram pra falar
Eu descarto e desconverso
Poder cantar e dançar
Prefiro contar em versos

Eu só tinha cinco anos
E não sabia escrever
Hoje tenho desenganos
Faço versos, sem querer

Tem gente que aqui visita
Que nunca estiveram aqui
Olha aprecia e conquista
Por Deus, eu aqui nasci

Eu era muito pequena
Mais já sentia alegria
Hoje tenho esse dilema
Era feliz... não sabia

Se eu abrisse o meu peito
Pra falar desta saudade
Será que teria jeito
Trair a felicidade

Saudade eu não sabia
Que ia sentir saudade
É grande minha alegria
Mas é maior minha idade

Se o tempo voltasse atrás
Como era antigamente
Eu seria areia a mais
Na praia de muita gente

Brincar de roda o meu forte
E pulava amarelinha
Nascer lá, foi pura sorte
Que lugar lindo que eu tinha

A lua no céu profundo
Tão bonita e tão presente
Brilhava pra todo mundo
Mas brilhava mais pra gente.

Saudade dos povos antigos
Com suas dores, seus ais
Dos parentes, dos amigos
Dos meus avós, dos meus pais.

Da saudade que aqui tive
Das flôrizinhas dos campos
Maitacas onde vives?
Cadê os meus perilampos.

Saudade do carro de boi
Ir cantando pela estrada
Daquele som que se foi
Hoje não resta mais nada.

Na festa do Padroeiro
Santo Inácio de Loiola
Podia faltar dinheiro
Ninguém faltava a escola.

No dia 13 de Maio
Era comemoração
Do negro que foi lacaio
Na droga da escravidão.

Havia o boi Maiadinho
Pai João e Mãe Maria
Cavalheiro e cavalinho
Festa de muita alegria.

A festa era presente
Até amanhecer o dia
Eu via naquela gente
Tanta paz, tanta alegria

Havia o jogo de bola
Jogavam de pé no chão
Todos eram bons sem sola
Todos eram campeão.

Vocês sabem que eu venho
Sem ser maestrina régio
Perdão mas orgulho eu tenho
Ter nascido no Colégio.

(Jeni dos Santos)

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